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Uma vida, uma chance.

Dá um piparote no pequeno aquário e um Beta preto e vermelho se move assustado acima dos seixos coloridos. No reflexo do aquário vê o movimento do voluptuoso corpo da mulher se levantando e indo ao banheiro. "Vem comigo?", ela diz. Dá uma última tragada e joga a bituca dentro do aquário. Levanta-se e olha a noite. As estrelas cintilando alegremente. A lua encoberta por uma fina camada de pequenas nuvens. Foi tomado por um impulso colérico. Por uma raiva fria, seguida de um hesitante pré-remorso. Era odioso escutar os barulhos que ela fazia no banheiro. Repugnante era o cheiro que viria depois, ele já sabia. Tenho que ser mais humano, pensou. Ignorando o convite da mulher, se enfiou debaixo dos lençóis, recostando a cabeça na montanha de travesseiros macios. Consultou o relógio. Três e quinze da manhã. Na verdade, o corpo dela nem é mais tão voluptuoso assim, pensou, divertindo-se com o repentino desdém pela mulher com quem casou. As relações íntimas agora, para ele, eram verdadeiras batalhas que travava consigo mesmo, esforçando-se para encontrar o sentimento que o fez colocar seu sobrenome naquela mulher que resfolegava e sussurrava doces obscenidades em seu ouvido. Não sabia mais o que sentia, se era um companheirismo, só amizade. Achava-a atraente e espirituosa, mas não parecia ser o suficiente. Sempre tinha uma lacuna que ele não conseguia distinguir o que poderia preenchê-la. E parecia que sempre que estava prestes a descobrir o que preencheria o vácuo de suas dúvidas, o curso de seus pensamentos era interrompido com um abraço desnecessário, com um beijo oco ou com algum beliscão desagradável, seguido da mesma maldita pergunta: “no que você estava pensando?”. Claro, isso o irritava profundamente. Ele via seus pensamentos, conclusões e conhecimento se separando como folhas que estavam boiando juntas num tanque e que se separavam vagarosamente após jogarem uma pedra na água. Consultou o relógio novamente. Três e quarenta e cinco. Percebeu que havia cochilado e acordado num sobressalto que algum barulho longínquo fez. Uma pancada seca, rápida, seguida de um ganido. O vizinho deve ter martelado o dedo, pensou, virou pro lado e dormiu sem se dar conta de que estava sozinho na larga cama de casal. Não fazia diferença. Dormiam separadamente juntos há umas boas semanas. O relógio desperta às oito da manhã. Hora da caminhada matinal. Vira pro lado e a mulher não está na cama. A porta do banheiro, ainda fechada. A luz fraca do recém-nascido sol vazando pelas brechas da porta. Mulheres, como eu as odeio. Cochilou mais um pouco, mal-humorado. Ela sempre entra no banheiro na minha frente, parece pirraça. Por que diabos eu não peço o divórcio? DROGA, POR QUE FUI ME CASAR? Resmunga o nome dela. Como não houve resposta, levanta-se e vai até a janela. O cigarro que horas antes jogara no aquário virou uma massa disforme a qual o Beta nadava em volta com indiferença. Foi até a porta do banheiro e bateu. Como ela é irritante. De uns meses para cá, tudo o que ela faz é me irritar, pensou com amargura. O jeito de andar, de lavar a louça. Suas pernas tortas, sua bunda caída. O formato da sua sobrancelha, as unhas dos pés. O cabelo por lavar, a axila por depilar, as manias de mulher, o tempero da comida, o perfume, as piadas, o jeito de falar, o jeito de olhar, a mania de acalentar qualquer resmungo que ele soprasse ao vento, a excessiva positividade, as demonstrações públicas de afeto, a insistência em andar de mãos dadas na rua, DROGA, como pude falar à esta mulher que a amo, amei, amaria por toda a eternidade? Como? Num impulso de raiva abriu a porta e pisou num líquido pegajoso. Praga, deve ser mais um maldito pote de creme derrubado. Desastrada. Cadê o interruptor? E esse cheiro de merda? Está diferente, tem algo mais podre além do que o organismo recusou e botou pra fora. Ele acha o interruptor e o pressiona tomado de desgosto, de uma raiva fria, de um antagonismo desmedido pela mulher que nomeava o interior da aliança dourada que estava na sua mão esquerda. A luz é acesa. Aos poucos, como que em câmera lenta, revelando uma realidade nova e inesperada. Terrificante e aterradora. Imutável e derradeira. Seu corpo ficou petrificado. Seu olhar congelado. Seu cérebro, um caleidoscópio de emoções e lembranças. Saiu do banheiro, ébrio de angústia, e escorregou ao pisar no chão do quarto. Droga de creme, vociferou. Mas não era creme, lembrou, com um sentimento estranho lhe tomando o peito. Foi até a janela. O peixe jazia ao lado do cigarro. Estava esbranquiçado, pálido. Morto. Abriu as janelas e respirou o ar puro da manhã. Lá embaixo, uma garotinha numa bicicleta cor-de-rosa tomava a dianteira em direção ao portão do condomínio, deixando o pai e a mãe para trás. Estes, riam, cúmplices, e deram um beijinho meigo e continuaram andando, falando "devagar, Beatriz". Fechou a janela e foi tomado por uma dor lancinante que o derrubou na cama. E ficou ali pelas três horas seguintes em posição fetal, deitado de lado com os joelhos no queixo, gemendo, se remoendo, se dilacerando. "Está morta está morta está morta está morta". Apertava os olhos cada vez que a imagem da mulher caída no chão vinha na mente. Quando fazia isso, imediatamente círculos vermelhos formavam-se em sua retina, e quando dissipavam-se, viravam a rachadura no piso que o crânio de sua esposa fez. "Meu amor, está morta. Morta. Morta. Morta". Se ele pudesse voltar no tempo...


Rafael Abreu
Publicado no Ranco das Letras em 17/04/2010
Codigo do texto: T2202851


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